Para mim as tais experiências significativas, que nos atravessam, fulminantes, no contato com a arte, tem uma frequência relativamente restrita, tesouro recolhido às vezes em situações não imaginadas.
O cinema me traz boa parte delas, e uma vez, ao acaso, me trouxe de encontro a este filme. Tinha ido com um amigo assistir a um filme de que nem me lembro mais, mas nos deparamos com a sala lotada. O único ainda disponível, num concorrido domingo à tarde, era um de título esquisito e obscuro: Kamchatka. Entrei sem expectativa nenhuma, e de algum modo, nunca saí de lá.
A história conta um duro momento na história da Argentina, em que o país se afundava em sua terrível ditadura militar. O filme, no entanto, se foca na narrativa de um menino de 10 anos e sua percepção sobre a fuga de sua família numa tentativa desesperada de fugir do horror das perseguições políticas da época. No lugar de apresentar a história de um país, conta a história de uma família com seus conflitos e afetos, entre consistentes e deslocados, num momento de grande mudança.
Não sabemos os nomes de ninguém da família, no momento em que se mudam para uma linda chácara no interior. Passamos a conhecê-los apenas como pai, mãe, pequeno, avô, avó e Harry, nome escolhido pelo pequeno protagonista, que nos conta tudo por seus olhos investigativos e curiosos.
A descoberta do mundo é aguda para Harry, neste momento. Entre carinhosas metáforas oferecidas especialmente por seu pai, ele tenta reconstruir suas relações com a nova realidade ao mesmo tempo em que se delicia com a presença muito maior dos pais no dia a dia. Lida com a morte no encontro com animais no quintal, e inicia seu treinamento de resistência com uma bela descoberta: um livro esquecido por alguma criança em cima do seu novo armário. Não por coincidência, conta a história do famoso Houdini, escapista que o inspira a ampliar suas capacidades de resistir.
Um filme delicado sobre um tema brutal. Para lembrar, sempre, que há um lugar de onde resistir.
(E onde é que entra Kamchatka nesta história? Para descobrir isso é preciso ver o filme...)
Stella Ramos trabalha com educação não formal, e integra o coletivo Zebra5. Faz do cinema, da literatura e da delicadeza seus refúgios de resistência.